Recentemente assisti a um filme muito bom intitulado
“A Condenação”. É a história de um casal de irmãos onde o rapaz é
condenado por assassinato. A única pessoa que acredita na inocência
do rapaz é sua irmã. A vontade de provar a inocência era tanta que a
moça deixou tudo de lado, inclusive sua família, e foi à
luta. Cursou então uma faculdade de direito para poder defender o
irmão. Quando se formou estudos com DNA estavam sendo desenvolvidos
para vários usos, inclusive para provar inocência de indivíduos que tinham sido
considerados culpados por crimes que não cometeram. Foi com o DNA do
irmão e do sangue encontrado no local do crime que se pode provar a inocência
do irmão que foi libertado de sua prisão perpétua. O filme é muito
bom e emocionante, pois mostra que apesar do preconceito da sociedade com
indivíduos diferenciados, o amor ainda é o melhor remédio contra injustiças.
Na época da história do filme, início dos anos 90, fui
procurado por companheiros de um laboratório da USP. Estes colegas me pediram
para desenvolver uma tecnologia de cálculo de paternidade: a probabilidade de
um indivíduo (o demandado) ser pai de uma determinada pessoa (o
demandante). Os dados eram provenientes de análise de material
genético sob a técnica de Microsatélites pela Reação de Cadeia da Polimerase
(PCR). O laboratório nos fornecia pares de alelos, de um sistema
multialélico, para cada um dos locos estudados, de 10 a 20 locos
normalmente. Tínhamos assim, em muitos casos, o material do
demandado, do demandante e da mãe do demandante. Entretanto, casos
famosos ocorreram quando não era possível a coleta do demandado, por morte ou
mesmo pela ausência deste. Quando isto ocorria fazia-se uso de material
genético de familiares. Nestes casos evidentemente o trabalho estatístico se
tornava mais interessante e desafiador.
A descoberta do papel do DNA foi de muita importância para
a sociedade. Por exemplo, usando a nossa tecnologia, no último
desastre de avião em Congonhas, com a coleta do DNA dos cadáveres e dos
familiares seria possível identificar estes cadáveres em tempo muito inferior
ao que foi usado na época. Com relação aos casos individuais, tive a
oportunidade de participar de casos extremamente delicados, como o da
paternidade de milionários e jogadores famosos. O mais importante,
no entanto, ocorreu em um sequestro onde os sequestradores enviaram um pedaço
do corpo da vítima para provar que estava ainda viva. Com o prazo
dado, meu trabalho teve de ser feito com urgência, em poucas horas durante uma
madrugada. Como o pai da vítima estava ausente, tivemos de usar o
material da mãe e dos irmãos que não eram filhos do mesmo pai. Esse
é o momento que nós, como estatísticos, nos sentimos mais úteis para a
sociedade.
Tabela 1: Genótípos de três
locos observados:
Demandantes
e Demandado.
Razão de verossimilhanças: A hipótese de nosso
problema é a de que John é o pai biológico de Antônio que sabemos ser filho de
Maria. A hipótese alternativa é, logicamente, a que John não é o pai
biológico de Antônio. A razão de verossimilhanças é a razão entre a
probabilidade de observarmos o genótipo de Antônio quando John não é o pai,
dividido pela probabilidade do genótipo sob a condição de que John seja o pai. Tomando-se
as frequências alélicas do banco de dados como probabilidades dos alelos,
as seguintes razões para cada loco são obtidas: i. Loco 1 seria ¼ no
denominador e ½ f16 no
numerador. Assim, R1 = 2f16;
ii. Para o Loco 2, continuamos a ter ¼ no denominador, caso de John ser o pai,
e (½)(g29+g33) no
numerador. Então, R2=2(g29+g33).
Respectivamente, para o loco 3, teríamos agora ½ e (½)(h19+h20) no
denominador e no numerador. Portanto, R3 =
(h19+h20).
Probabilidade de paternidade:
suponha que p1, p2 e p3 sejam as
probabilidades posteriores de John ser o pai depois de analisados os
Locos 1, 2 e 3, com p0 sendo a
probabilidade inicial de John ser o pai antes do uso do Loco 1. Analogamente,
as razões de chances (ou odds) são O0 =(1-p0)/p0, O1=(1-p1)/p1, O2=(1-p2)/p2 e O3=(1-p3)/p3. Usando-se apenas a fórmula de Bayes
sequencialmente, obtém-se as probabilidades posteriores p1=(1+O0R1)-1, p2=(1+O1R2)-1 e p3=(1+O2R3)-1.
Os nossos juízes nunca permitiram
usarmos prioris informativas e assim sempre iniciamos com probabilidade p0=
½. Usaremos as frequências relativas f16=0,05, g29 =
0,10, g33=0,04, h19=0,15 e h20=0,08 provenientes
de um grande banco de dados coletados pelo laboratório com amostras de sangue
analisadas. A consequência desses números é a sequência p0=0,50; p1=0,9756; p2=0,9931
e p3=0,9984 das probabilidades posteriores. Ou
seja, mesmo começando com chances iguais para John ser ou não o pai, após
analisar três Locos fica praticamente certo (com 99,84% de chances) que John
seria o pai.
Este exemplo acima nos mostrou um
caso padrão dos casos judiciais de nossa população. Entretanto temos de
nos lembrar de que existem mutações que não ocorrem tão raramente quanto se
gostaria que fossem. Nosso programa leva em consideração inclusive taxas
de mutação diferentes entre os locos. As probabilidades muitas vezes vão
aumentando e se aproximando de 100% e de repente há um “falso” negativo que
mesmo considerando-se uma taxa baixa de mutação a probabilidade de paternidade
diminui pouco com o loco de mutação.
Outro fato importante é entender-se
que nosso trabalho aqui é apenas produzir um número preciso, a probabilidade de
paternidade. A dura tarefa da decisão cabe sempre ao Juiz que trabalha no
caso. A forma como decidem depende muito de cada um deles. Há
juízes que consideram paternidade positiva com probabilidades acima de
80%. Há outros que quase sempre não aceitam a demanda, pois pensam que
qualquer chance, mesmo ínfima, da não paternidade não prova a “culpa”.
Nós estatísticos temos o poder de saber obter informação, contudo o poder da
decisão não é nosso: somos mesmo os operários da “ciência”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário