Sábado passado (08/02/2020) foi completado um ano da tragédia no Ninho do Urubu, apelido do Centro de Treinamento (CT) do Flamengo, que vitimou 10 jovens adolescentes. A tragédia foi causada por um incêndio em instalações provisórias, que alojavam parte dos jogadores da base do Flamengo. Essa tragédia teve dezenas de feridos em menor gravidade (tanto fisicamente quanto mentalmente), 3 feridos com maior gravidade que passaram por longo período de internação hospitalar e o pior acontecimento foi a morte de 10 candidatos a jogadores da próxima década.
Conforme dito pelo então recém-empossado presidente Rodolfo Landim, essa foi a maior tragédia em todos os mais de 120 anos de história de vida desse clube. Imediatamente, o clube colocou à disposição das famílias apoio emergencial na forma de aconselhamento psicológico, traslado dos familiares das vítimas para um hotel perto do CT e um ajuda pecuniária a título de indenização provisória, agora aumentada pela justiça.
Após passado o período imediato ao acidente, iniciou-se uma etapa de negociação para a reparação financeira das famílias. É bom repetir que nada repõe a perda de um ente querido e essas famílias irão conviver o resto de suas vidas com essa falta, que dói muito e nunca se apagará. Entretanto, uma das formas que a sociedade busca compensar essa lacuna é através de compensações monetárias, destinadas a reparar as perdas financeiras presentes e futuras.
É sobre esse particular aspecto que gostaria de me debruçar: quanto vale uma vida? A decisão que a justiça brasileira terá de tomar é o valor financeiro da vida de um potencial futuro atleta. Existem pelo menos 2 componentes nessa avaliação: o aspecto moral e o aspecto profissional. Não tenho idéia de como pode ser feito o cálculo de uma compensação moral pela perda de um ente querido. E não pretendo entrar nesse mérito.
O que sim pode-se discutir aqui é o valor de uma compensação financeira pelo que a família deixará de auferir pela perda de um ente querido em termos do que ele poderia prover ao longo de sua vida profissional caso não tivesse sido acometido por essa fatalidade. Um cálculo apressado poderia ser baseado no que um jogador de nível de seleção poderia receber ao longo de sua vida profissional. tomando por base os maiores salários do país, poderia se tomar como base um salário mensal de R$1.000.000,00 (hum milhão de reais) ao longo de 15 anos, que é a duração estimada da carreira de um jogador de futebol. Isso perfaria um total de cerca de 200 milhões de reais.
Um levantamento da CBF divulgado em 2016 mostra que 82,4% dos jogadores de futebol do país ganham menos que R$1.000,00 por mes, 13,7% ganham entre R$1.000,00 e R$5.000,00 e 3% ganham entre R$5.000,00 e R$50.000,00 e menos de 1% ganha acima de R$50.000,00. Assim, teremos que o salário mensal médio de um jogador no Brasil é de cerca de R$3.000,00. Um cálculo mais realista levaria em conta que boa parte dos jogadores de base não se torna profissional do futebol e enquanto profissional regular receberia esses R$3.000,00 ao mês durante 40 anos de vida profissional, perfazendo um total de cerca de 1,5 milhões de reais. Qual dos 2 valores indenizatórios o juiz responsável por esse processo cível deveria arbitrar? Parece razoável supor que o valor mais adequado estaria entre esses 2 valores, mas esse espaço de variação é gigantesco.
A solução vem mais uma vez através do uso correto de probabilidades no contexto de tomada de decisão. Os 2 cenários apresentados acima são apenas algumas das possibilidades disponíveis. O que a teoria da decisão preconiza é que o valor que deveria ser arbitrado pelo justiça seja uma média de todos os valores possíveis. Mas essa média não pode nem deve ser uma simples média aritmética. Ela deve levar em conta as chances relativas de cada cenário contemplado.
Fazendo isso, fica claro que o peso na conta associado a um super-craque deveria ser tão diminuto quanto as chances de um jogador qualquer de uma escolinha de futebol se tornar um Neymar. Essa chance é extremamente baixa. O levantamento acima citado mostra que apenas 0,4% dos jogadores de futebol profissionais do país ganham salários mensais acima de R$100.000,00. Outros levantamentos mostram que uma pequena percentagem de jogadores de escolinhas de futebol se tornam jogadores profissionais. Ou seja, as chances de um deles se tornar um milionário do esporte são extremamente baixas.
Tudo isso aponta para valores médios na ordem de 1 a 2 milhões de reais, considerando também cenários ainda mais pessimistas que o descrito acima mas possíveis dentro da realidade nacional. Existem estudos que dão sustentação a visões mais pessimistas da situação do futebol no país. Acredita-se que a oferta de acordo feita pelo clube esteja em valores próximos desta ordem de grandeza. As famílias tem todo o direito de lutar na justiça por valores maiores. Afinal, cada família estará falando do seu filho querido, cuja perda lhes é tão sofrida. Caberá à justiça brasileira decidir em caso de ausência de acordo, mas a base que ela deve usar segue na linha do que foi ainda que resumidamente descrito acima.
Se a conta é tão desfavorável assim, porque tantos clubes mantem uma dispendiosa e complexa estrutura de captação de recursos humanos? Porque cada jogador promissor que eles revelam e vendem para o exterior sustenta a manutenção das centenas de candidatos que, em sua maioria, não serão bem sucedidos mas que podem conter jóias como Reinier, Lucas Paquetá e Vinicius Jr, vendidos recentemente pelo próprio Flamengo por algumas dezenas de milhões de reais.
Gostaria de concluir reforçando que não se falou aqui de colocar preço na vida de um ser humano. O que se procurou abordar foi como deve ser feito o exercício de projetar os ganhos financeiros de um futuro jogador de futebol, considerando todos os possíveis cenários de futuro e compatibilizando eles da forma mais adequada e justa possível.
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