terça-feira, 5 de maio de 2020

Cuidados com analises de dados da Covid19

Fonte: arquivo pessoal (Leonardo Bastos)

por Leonardo Bastos*

Eu recomendo muita cautela ao interpretar as estimativas e previsóes desses e da grande maioria de modelos para covid. O grupo do Fergunon é um grupo muito bom de modelagem de doenças infecciosas, o relatório do Samy [NR: Dana] e colaboradores é baseado em um trabalho do pessoal do Imperial. Apesar dos modelos serem interessantes, a inferência para vários países é muito pobre. Os dados de casos não refletem a dinâmica da epidemia mas a dinâmica da testagem, e a definição de casos atual não é consistente entre países e nem dentro dos países, pois não há critérios de inclusão e exclusão de casos bem definidos. Em particular no Brasil, a partir de um certo momento passou a dar prioridade aos casos graves, mas ainda alguns lugares notificam casos leves, o que faz os números serem uma mistura de dados sem uma definição do caso.

Mais alguns problemas:

Homogeneidade espacial. O Brasil, como todos sabem muito bem, não é homogêneo (suposição importante para modelos compartimentais). A epidemia do Brasil não pode ser vista como uma série única, isso não faz sentido. Em qualquer país grande, a epidemia começa em momentos distintos em lugares diferentes. Então não haverá um único pico da epidemia, o pico da série do Brasil vai ser dominada por São Paulo e Rio, mas outros lugares terão suas curvas com um shift e com intensidade bem variadas pois muito lugares tem politicas de enfrentamento da epidemia bem distintas. Lugares que conseguiram antecipar o isolamento estão evitando a evolução rápida, outros lugares que não tiveram politicas de isolamento ou agiram tarde demais estão com um rápido crescimento de casos colocando o sistema de saúde no limite. E mais adiante quando a curva começar a descer em São Paulo e Rio, a série está em plena ascensão em outros lugares.

Testes não são perfeitos. Os testes não tem especificidade e sensibilidade alta, pois eles dependem muito da janela imunológica ou da carga viral, depende do teste. Ou seja, a pessoa pode ter tido Covid19 e o teste dar negativo porque a coleta aconteceu fora da janela ótima. 

Subnotificação. Para falar de subnotificação é preciso ter uma definição clara do que é o caso. E os dados disponíveis não tem essa definição. Mas vamos supor que a definição de caso é simplesmente alguém com o virus. É fácil ver que teremos subnotificação de casos assintomáticos e casos leves que as pessoas não vão procurar um posto de saúde (nem deveriam, pois não tem o que fazer a não ser espalhar o virus para outros, uma vez que não tem nenhum tratamento específico), já os casos graves não tem jeito as pessoas precisam de atendimento médico. E esses  podem não ser testados (gerando subnotificação), ter resultados negativos ou inconsistentes por conta da janela imunológica do teste. E ainda tem a subnotificação de óbitos por Covid19 de pessoas que não procuram serviço medico. Esse subregistro pode ou não ter um padrão, existem trabalhos nessa linha cito aqui dois artigos com autores brasileiros: de Oliveira, Loschi e Assunção (2017, Statistics in Medicine) e Stoner, Economou e da Silva (2019, JASA).

Atraso de notificação. Se estiver olhando para dados reportados hoje, tenha certeza que o numero de casos é maior do que o observado. Pois existem os casos que aconteceram mas ainda nao foram reportados. Usualmente tem o atraso da digitação do caso que pode levar alguns dias ou semanas. (Alguns postos de saúde nao tem internet, a ficha de notificação costuma ser levada para um lugar e nesse lugar ela é digitada e enviada para a secretaria de saúde, q vai tratar o dado excluindo duplicidade por exemplo já que a ficha pode ser digitada duas ou tres vezes por profissionais diferentes). E para a Covid19 temos o atraso de laboratório, onde os LACENS estão com filas para realização do teste, sem contar com falta de insumos e pessoal. Existem modelos para corrigir atraso de notificação.

Esses são só alguns problemas existentes no terreno das doenças infecciosas. Não tinha intenção de escrever esse email, pois não gosto de exposição, mas achei justo compartilhar alguns problemas relacionados a essa (e outras epidemias) pois sei que muitos grupos no país ligados a departamentos de Estatística estão tentando contribuir de alguma forma com essa terrível pandemia, talvez isso possa ajudar de alguma forma.

* - Leonardo Bastos é pesquisador da Fiocruz e Ph.D. em Estatística pela Universidade de Sheffield.

2 comentários:

  1. Muito bom esse trabalho. Queria saber se posso utiliza-lo no nosso portal
    https://ciis.fmrp.usp.br/covid19/

    De qualquer maneira parabens!

    Domingos alves

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