terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Cotas: única opção?


Emílio Pedroso/Agência RBS

por Dani Gamerman e Marcio da Costa

O debate sobre cotas e políticas afirmativas está instalado na sociedade brasileira. Decisões precisam ser tomadas e é inevitável que opiniões, vontades e desejos acalorados sejam apresentados. Ainda que evidentemente política, a discussão pode se beneficiar da contribuição de avanços científicos provenientes do já longo tratamento à problemática das diferenças de oportunidades sociais conjugada às diferenças de desempenho escolar. Parece haver consenso acerca da motivação principal que embala nossa questão: não é justo ou academicamente defensável que a escolha de nossos alunos despreze bons talentos, limitados por oportunidades educacionais mais restritas, por conta de sua origem social ou de características adscritas. Na distribuição de um bem socialmente escasso e altamente valorizado, como o ensino superior de bom padrão, é imprescindível que busquemos proporcionar acesso aos candidatos de melhor potencial acadêmico, contornando de alguma forma os constrangimentos de uma desigual estrutura de oportunidades pregressas. Não é possível à universidade resolver a questão, mas está ao alcance minorar suas manifestações. Cotas são possíveis, mas talvez sejamos capazes de produzir algo mais adequado aos princípios que elas buscam atender.

Desde os anos 60 do século passado, inúmeros trabalhos científicos têm demonstrado que o ambiente sociocultural e econômico (família, meio de convivência, relações sociais) é o mais forte condicionante – na esfera sociológica – dos desempenhos e trajetórias educacionais. Há, contudo, o reconhecimento de elementos no plano das oportunidades propriamente escolares que são explicativos de uma parcela relevante da desigualdade de acesso e permanência no ensino superior (ou de outros aspectos educacionais sensíveis a condicionantes sociais). O chamado “efeito-escola” é forte, mais ainda em contextos como o brasileiro, onde a diferença de qualidade entre escolas e redes é muito marcante. Somam-se, assim, vantagens culturais e econômicas a vantagens escolares, formando o quadro de um dos sistemas educacionais mais desiguais do mundo.

A questão do mérito precisa ser encarada sob esse ângulo complexo. O objetivo deve ser, sob a ótica da equidade, recrutar os de maior mérito. No entanto, mérito e oportunidades sociais/escolares não devem ser confundidos. São dimensões independentes. A crítica a iniciativas que procuram ressaltar o mérito freqüentemente embaralha as coisas, provavelmente porque se pode ser fácil distingui-lo conceitualmente, operacionalmente a tarefa não é trivial. Estabelecer processos de seleção é inevitável e desenvolvimentos científicos permitem traduzir os princípios equalizantes em procedimentos mais adequados. Apesar de relativamente recente, o enfrentamento científico dessas questões não é mais novidade e a área de Estatística Educacional tem avançado na construção dos meios adequados para a correta e rotineira implementação dessas técnicas.

O tratamento científico das respostas de indivíduos a questões de uma prova está relativamente sedimentado. Historicamente, procedimentos de avaliação de conhecimentos, em grande escala, foram progressivamente se deslocando da contagem de acertos em provas para tentativas de qualificação da variação de tais acertos, conforme o nível de dificuldade das questões apresentadas. A evolução do conhecimento na área, a partir de meados do século passado, permitiu que se estabelecesse um padrão básico de conhecimento norteado pela teoria psicométrica e conhecido hoje em dia como Teoria de Resposta ao Ítem (TRI). Essa teoria, desenvolvida e aprimorada para enfrentar desafios educacionais, é usada rotineiramente para tratar dados de vários tipos, especialmente para avaliação de proficiência de candidatos em um determinado assunto. Um dos exemplos mais famosos é o TOEFL, aplicado pelo Educational Testing Service, dos EUA para aferir conhecimentos da língua inglesa.

O que a TRI faz, simplificadamente, é levar em conta as especificidades das questões propostas aos candidatos para poder calcular adequadamente o seu escore ou sua nota. As especificidades mais relevantes são a dificuldade da questão e sua capacidade de discriminação entre os candidatos com diferentes níveis de habilidade quanto ao que está sendo avaliado. O escore visa representar a real, mas não diretamente observável, capacidade do indivíduo, permitindo identificar sua posição provável em uma escala de conhecimentos/habilidades. Essa teoria representa um ganho substancial sobre a prática usual de simplesmente contar percentuais de acertos a itens com pesos iguais e também confere comparabilidade entre aplicações de testes referidos à mesma matriz deconhecimentos/habilidades.

A utilização convencional da TRI, brevemente exposta acima, pressupõe que cada questão tem dificuldade e discriminação únicas para todos os alunos. Entretanto, sabemos que indivíduos de diferentes grupos socioeconômicos reagirão de forma diferente às questões que lhe forem propostas numa prova, independentemente de sua capacidade. Um exemplo simples é uma questão sobre um tema que não foi ensinado. Por mais brilhante que seja o aluno, é pouco provável que ele venha, no transcorrer de uma longa prova, a deduzir o conhecimento ao qual não teve acesso. O resultado será um desempenho pior que o de um aluno menos capaz, mas que teve a oportunidade de ser apresentado ao tema. Efetivamente, diferenças na qualidade do ensino e no ambiente socioeconômico têm influências não desprezíveis no desempenho de um aluno.

Todas essas questões podem e devem ser incorporadas no momento de aferição da real capacidade de um aluno, especialmente em um momento tão importante como o do ingresso numa universidade. Algumas universidades brasileiras já estão caminhando nessa direção, ao atribuir bonus na nota de candidatos menos favorecidos. O bônus é calculado com base em estimativas do peso do desfavorecimento. Essa é uma forma ainda simplificada, pois não avalia o impacto em cada questão da prova e apenas faz um tratamento global. Além disso, ele fere o princípio básico de avaliar o aluno levando em conta apenas os exames a ele submetidos ao trazer elementos externos à esses exames para a "compensação".

Por outro lado, a atribuição de cotas previamente definidas, ainda que encete um procedimento simples, traz uma forte carga de arbitrariedade, pois impõe estabelecer antecipadamente o tamanho da “compensação” a ser feita a grupos em suposta desvantagem. Reconhecer a diferenciação em função das oportunidades obtidas pelos alunos é importante, pois nem toda questão apresenta a mesma dificuldade para grupos socioeconômicos distintos. Mas o princípio básico de usar apenas a prova de seleção, como o ENEM, na aferição da nota deveria ser preservado. Isso é possível via metodologias de funcionamento diferencia do item (ou DIF, da sigla em inglês). O que o DIF faz é utilizar os informações dos próprios exames para avaliar como e quanto de compensação cada questão de prova deveria ter para compensar diferenças nas oportunidades educacionais.

Com isso, a TRI segue sendo utilizada mas com as acomodações para as classes menos favorecidas. Não existe nenhuma ponta de paternalismo, apenas computação efetiva do tamanho do desfavorecimento levando em conta apenas as características da prova. Nossa proposta é, de fato, um convite para que a sociedade brasileira se atreva a propor um modelo de seleção que, incorporando os avanços técnico-científicos (especialmente a evolução da TRI com uso da DIF) reduza o espaço da decisão arbitrária prévia, proporcionando um resultado socialmente mais justo. Não é possível garantir a priori que alcançaremos um
sistema suficientemente convincente e operacionalizável de imediato. Mas não tentá-lo seria recusar o próprio papel da universidade.


(Esse texto foi escrito no ano passado mas acho que segue atual.)

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