Professor de Filosofia da USP, atual Ministro da Educação
A USP vive hoje sua mais nervosa escolha de um novo reitor em vários anos. O conflito se deve à sucessão. Nas últimas décadas, as universidades públicas de todo o país adotaram formas de eleição pela comunidade. A USP foi a exceção. Inventou um sistema pelo qual, não havendo candidaturas inscritas, esperava-se que espontaneamente os melhores lembrassem outros nomes, melhores ainda, de modo que sem partidarização, sem política, pesquisadores de alto calibre acabassem sendo escolhidos, por um misto de colégios restritos e de decisão pelo governador, para dirigir a Universidade. O princípio é correto. A melhor universidade se distingue pela qualidade na pesquisa e no ensino graduado e pós-graduado. Daí um teor aristocrático na eleição uspiana: os melhores lembrariam os melhores. Mas, na prática, isso não funcionou. Sempre se soube, desde o começo, quem eram os dois ou três “para valer”. Facções logo dominaram o processo. O que seria aristocracia virou oligarquia, com os poucos (oligoi) substituindo os melhores (aristoi). Daí, os últimos reitores se fecharam no espaço físico da reitoria. Cavou-se uma distância grande, política e cultural, entre dirigentes e dirigidos. Daí, uma crise potencial de legitimidade dos reitores.
Nenhum dos seis reitores eleitos no regime atual tentou mudá-lo. A novidade na eleição de 2009 é que todos os candidatos o prometeram. Participei do processo, defendendo a mudança, representante que era da categoria de Professores Titulares no Conselho Universitário. O reitor João Grandino Rodas convocou duas reuniões do Conselho, que debateu o tema de forma exaustiva e, em 2012, conclusiva. Em meados do ano passado, obteve-se um consenso em torno de uma proposta moderada. Era só votar. Mas o reitor foi adiando. A surpresa ocorreu quando, no início deste ano, circulou que a administração queria introduzir a reeleição na USP; não deu certo; depois disso, se tentou uma reeleição cruzada, na qual o vice-reitor se tornaria reitor, e o reitor ocuparia a vice-reitoria, mas com poderes fortemente ampliados. Tal proposta, submetida a vários diretores, foi recusada por três dos quatro pró-reitores – Maria Arminda (Cultura), Marco Zago (Pesquisa) e Vahan Agopyan (Pós-Graduação). Rodas não teve, assim, o apoio de sua própria equipe. Rompeu com Zago e Vahan, que hoje compõem a chapa com mais condições de se eleger – um cientista ex-presidente do CNPq, um engenheiro ex-presidente do IPT – e a única que fala em democracia no plano de gestão. Então, perto do fim de seu mandato, o reitor Rodas decidiu discutir a democracia na USP.
A reforma foi votada em 1º de outubro. Adotou-se uma medida simples, defendida havia anos, entre outros por Hernan Chaimovich e por mim: a escolha passa de um colégio de 250 membros, facilmente controlado pelo reitor e pró-reitores, para o conjunto de quase dois mil membros das congregações, professores em sua maioria. A mudança torna o processo mais aberto, menos controlado – tanto que é difícil, antes do dia 10, quando a comunidade será consultada in totum, e do dia 19, quando ocorrerá a votação propriamente dita, especular sobre os resultados. Também se determinou a inscrição dos candidatos, que têm de formar chapas. Mas não se avançou rumo à eleição direta, nem se ampliou o colégio – por exemplo, poderiam ter sido incluídos os membros dos conselhos departamentais, que atuam intensamente na vida universitária. Também se manteve, por ora, a lista tríplice submetida ao governador. Em vinte sucessões reitorais na democracia, na USP, Unesp e Unicamp, sempre o governador respeitou a preferência da universidade, com uma única exceção – justamente, a escolha de Grandino Rodas, em 2009, em vez do mais votado, Glaucius Oliva, hoje presidente do CNPq.
Inscreveram-se quatro candidatos, que têm seus programas e vídeos na Internet. O reitor apoia a candidatura do geógrafo Wanderley Messias, da FFLCH, tendo como vice a ex-reitora Suely – curiosamente, Rodas foi nomeado por Serra, em 2009, justamente porque o governador não queria ninguém que fosse próximo da então reitora. O vice-reitor Helio Nogueira não parece mais ser o preferido do reitor, embora tenha apoio em várias unidades. Dos quatro candidatos, só um não participou da gestão cessante, José Roberto Cardoso, da Poli. É de se esperar que em eleições futuras acabe a tendência, que tem sido constante, de haver como candidatos praticamente só pró-reitores e diretores.
Grandino Rodas teve êxitos. Construiu muitas obras. Formou uma equipe competente. Mas se desgastou mais do que precisava, devido à relutância em votar a reforma na escolha de reitor, à briga desnecessária com sua Faculdade de Direito e, finalmente, ao rompimento com a própria equipe. Raro reitor da USP foi tão criticado na imprensa: a cada conflito com os estudantes ou funcionários, os jornais apontavam falhas da reitoria. Até o Judiciário lhe negou, recentemente, a pronta reintegração de posse da reitoria invadida – algo antes automático –, afirmando que ele se negara a dialogar com os estudantes. A invasão foi lastimável, com depredações e furtos, mas de certa forma representou o esgotamento de uma forma de política universitária.
A concentração de poderes na reitoria é antigo fator de insatisfação. Este ano, a descoberta de que a USP Leste foi construída sobre dejetos químicos foi uma gota a mais, levando à demissão do diretor daquela unidade; segundo a Adusp, o reitor teria prometido nomear diretor quem ganhasse a eleição direta na USP Leste. Isso é curioso, porque os reitores são muito ciosos de seu poder de escolher os diretores de todas as unidades. Atualmente, assim como o reitor é escolhido pelo governador a partir de uma lista tríplice, os diretores das faculdades são nomeados pelo reitor com base também em listas tríplices. Se nem a Poli, a Filosofia ou a Medicina, para citar três unidades fortes e consolidadas, estão a salvo da lista tríplice, por que a uma das unidades mais jovens teria sido prometida a autonomia? Vejo neste rumor um sinal forte. As unidades querem escolher sozinhas seu diretor, e por pouco o Conselho Universitário não aboliu, em outubro, a lista tríplice para diretores. Na plataforma dos candidatos, o assunto não é mencionado, salvo na de Zago, que prometeu aboli-la e respeitar a decisão interna de cada Unidade. O excessivo centralismo é uma das maiores causas de mal-estar na USP.
A tensão na Universidade de S. Paulo tomou a forma de um confronto entre quem defende a qualidade científica e quem quer a democracia, entendendo por ela a eleição do reitor com igual peso para professores, alunos e funcionários. Não concordo com essa polarização. O segredo da USP é a alta qualidade. Ela é a melhor universidade da América Latina porque não transige neste ponto. Mas qualidade não é oligarquia. Em 2010 o reitor decidiu transferir o prédio da reitoria, a alto custo. Essa medida poderia ser justa, mas o problema é que foi decidida sem ampla discussão. E não tem cabimento uma situação em que pesquisadores de alto nível, porque precisam do apoio da reitoria para seus laboratórios e pesquisas, necessitam votar no candidato com pinta de vencedor. Esse tipo de política não deve existir em lugar nenhum, menos ainda no mundo acadêmico.
O cerne da qualidade está na cultura de avaliação da pesquisa e da pós-graduação, disseminada pela instituição. Todos hoje sabemos que é importante pesquisar, conseguir o reconhecimento dos pares, publicar nos melhores veículos. Só a graduação ainda não tem uma cultura tão consolidada de qualidade e inovação, e esse deveria ser o grande desafio das universidades nos próximos anos. Mas, quando dizemos que o segredo da qualidade está numa cultura de avaliação, afirmamos também que uma cultura compartilhada não precisa de um poder semi-absoluto dando as ordens. Justamente porque ela é partilhada, ela pode funcionar sem autoritarismo.
Já quanto à democracia, a USP não é um “demos”, um povo, porque não tem as complexas relações econômicas, sociais e políticas que caracterizam o povo; uma universidade é uma instituição especializada. A USP, como suas duas irmãs, foi instituída pelo povo (o paulista) para ter a melhor pesquisa e o melhor ensino, e essa condição de “melhor” exige mérito. (Não uso a palavra “meritocracia”, porque ela está errada. O poder, o “kratos” dos gregos, nuam sociedade atual só pode estar no povo. Mas a universidade não é o povo. E nela o fundamental não é o poder – “de nomear e demitir”, como dizia Getúlio Vargas – e sim a autoridade: o reconhecimento que os melhores conseguem, devido a sua qualidade intelectual ou científica, devido portanto a seu mérito).
As duas demandas – a da qualidade mas sem oligarquia, a da participação mas sem pôr em risco a qualidade – precisam e podem negociar. Parece-me pouco que, mesmo com a recente e moderada reforma, nem mesmo um terço dos seis mil professores doutores da USP votem na escolha do reitor; deveriam votar todos eles, com uma participação compatível de alunos, funcionários, sobretudo especializados, e talvez ex-alunos. Mas o decisivo na USP, para além da forma de escolha do reitor, só pode ser a busca da melhor qualidade.
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Esse texto foi publicado no facebook do Prof. Janine em 17 de dezembro de 2103.
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