terça-feira, 8 de novembro de 2016

Isonomia do ENEM

http://guiadoestudante.abril.com.br/enem/enem-veja-impressoes-dos-estudantes-sobre-o-2o-dia-de-provas/

No último final de semana tivemos mais uma edição nacional do ENEM. Essa edição teve uma população de mais de 8,6 milhões de inscritos. Um exame para tanta gente e de âmbito tão extenso não pode passar incólume em um país de infra-estrutura ainda pouco azeitada. Chega a ser surpreendente que um projeto, que além de tudo possui de matizes tão inovadores para nossa cultura, pudesse obter êxito e passasse a ser usado como principal instrumento de acesso à imensa maioria das universidades pública e privadas de nosso país. 

Mas os percalços são a marca de nosso país e não tinha porque ser diferente desta vez. O evento desse momento de efervescência política do país foi a ocupação de escolas e universidades por parte de estudantes. A pauta dos estudantes inclui a derrubada de mudanças que estão em tramitação no congresso nacional, especialmente o projeto de emenda constitucional que estabelece teto para despesas públicas e a medida provisória propondo mudanças na estrutura do ensino médio.

Como se sabe, exames de grande abrangência como o ENEM precisam de inúmeras salas de prova para acomodar os milhões de alunos inscritos. A solução natural nesses casos é usar as salas de aulas já existentes nas esferas públicas municipais, estaduais e federal. Assim, muitas escolas de ensino fundamental, médio e superior (universidades) foram alistadas para a realização do exame. Com a ocupação de muitas dessas escolas e sem a perspectiva de volta à normalização, o Ministério da Educação resolveu adiar a realização da prova para os alunos cujas salas estavam em escolas ocupadas para o início do próximo mês. 

Uma das polêmicas geradas por essa mudança foi se os alunos afetados (cerca de 271 mil ou 3,1% do total) estariam sendo beneficiados ou prejudicados com a medida. Foi interessante ver uma divisão de opiniões com alunos de ambos os lados (afetados e não afetados) falando de prejuízo. Acho que a divisão reflete a perspectiva teórica de que a alteração não implica em nenhuma diferença sistemática significativa, implicando mais em perdas/ganhos de ordem individual. Alguns argumentam que os alunos afetados ganham pois terão mais tempo de estudo ao passo que muitos argumentam que eles perdem pois suas aulas ao longo deste ano prepararam para a realização do exame em novembro e o adiamento interfere de forma negativa com esse adiamento. 

Mas o ponto que eu queria comentar rapidamente é sobre um acontecimento corriqueiro em situações de exceção como essa: a judicialização do problema. Neste caso, um procurador do Ministério Público Federal (MPF) do Ceará entrou com um pedido de suspensão do exame para todos os inscritos. Segundo entendi das fontes citadas, o procurador alegou que haveria uma quebra do princípio da isonomia entre os candidatos na prova de redação. Isto é, como os temas da prova de redação fatalmente seriam diferentes, um dos grupos seria beneficiado.

Essa busca obsessiva pela igualdade é uma meta que deve ser perseguida pela justiça. Mas há limites. Ela já serviu como base para questionamentos em edições anteriores do ENEM em momentos onde a teoria base do ENEM, Teoria de Resposta ao Item (TRI), era desconhecida do grande publico. Ao longo, esforços realizados por uma série de agentes públicos entre os quais gostaria de me incluir trataram de calçar a decisão do Ministério da Educação com argumentação sólida. O presente incidente parece mostrar que esse argumento foi introjetado pela sociedade em geral. Afinal, o questionamento não incluiu nenhuma das provas de múltipla escolha, onde a TRI é diretamente aplicada.

Mas os princípios básicos que regem a TRI também regem as outras técnicas de avaliação usadas na correção e permitem que uma comparação justa também seja realizada na prova de redação independente do tema. Basta que princípios básicos sejam respeitados. Por exemplo, os temas tem que ser de amplo domínio público para que todos os candidatos tenham um mínimo de conhecimento necessário para desenvolver um texto sobre o assunto. Pelo visto esse entendimento prevaleceu e de forma bastante rápida pois em poucas horas uma juíza federal do mesmo estado negou o pedido de suspensão. O trecho de sua decisão destacado pela mídia deixa isso bem claro ao dizer "Apesar da diversidade de temas que inafastavelmente ocorrerá com a aplicação de provas de redação distintas, verifica-se que a garantia da isonomia decorre dos critérios de correção previamente estabelecidos, em que há ênfase na avaliação do domínio da língua e de outras competências que não têm "o tema" como ponto central."

Assim, acredito que o MPF deve se manter atento aos interesses da sociedade brasileira mas foi bastante salutar ter sido dada mais esse apoio da justiça para a consolidação dessa política de largo alcance. Não estou dizendo com isso que apoio integralmente o ENEM em seu atual formato no que diz respeito ao conteúdo mas que considero que se trata de um instrumento com forte embasamento teórico e que deve ser aprimorado e mantido como instrumento de política pública na área educacional no nível superior.

PS: ontem o mesmo procurador do MPF entrou com novo pedido de suspensão da redação; agora devido à descoberta de vazamento da informação do tema da redação.

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