terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Torrada queimada dá câncer?

 www.statslife.org.uk

por Sir David Spiegelhalter*

A agência de controle de alimentos britânica (FSA, sigla de Food Standards Agency) lançou hoje (dia xx/01/2017) a campanha Rumo ao Ouro (Go for Gold) encorajando os britânicos a não tostar as comidas assadas ou torradas e manter as batatas fritas a uma bonita cor dourada. A idéia é reduzir o consumo de acrilamida, um produto químico que, segundo a FSA,  é "criado quando muitos alimentos, particularmente os ricos em amido como batata e pão,  são cozidos por longos períodos e a altas temperaturas, oque acontece quando são assados, fritos, grelhados ou torrados."

Acrilamida (AA) pode ser bastante nociva em doses grandes. É usada como selante industrial e trabalhadores com níveis muito altos de exposição sofrem neurotoxicidade severa. Doses muito altas mostraram crescimento de risco de cancer em ratos. A agência internacional de pesquisa em cancer (IARC, sigla de International Agency for Research on Cancer) a considera ‘um provável agente carcinogênico humano’, colocando-a na mesma categoria que muitos produtos químicos, carne vermelha, ser cabeleireiro ou trabalhar em turnos longos.

Entretanto, não existência evidência sólida de danos a humanos consumidores de acrilamida em sia dieta: a agência de cancer britânica diz que 'no momento não existe evidência ligando acrilamida e cancer'.

Essa falta de evidência não é por falta de tentativas. Um volumoso relatório da agência de alimentos européia (EFSA) lista 16 estudos e 36 publicações, mas conclui:

Nos estudos epidemiológicos disponíveis até o momento, o consumo de AA não foi associada com um maior risco dos canceres mais comuns, incluindo aqueles do trato gastrointestinal ou respiratório, de bexiga, prostata ou de mama. Alguns estudos sugeriram um risco aumentado para cancer renal, endometrial (em particular para não-fumantes) e de ovário, mas a ewvidência é limitada e inconsistente. Além disso, um estudo sugeriu uma menor sobrevida para mulheres não fumantes com cancer de mama para uma exposição pré-diagnóstica à AA mas mais estudos são necessários para confirmar esse resultado. (p185)

Lembre que cada estudo testa a associação com uma longa lista de tipos de cancer. Usando critérios usuais para significância estatística, esperaríamos 1 em 20 dessas associações ser positiva pelo mero acaso.

Uma resposta padrão é o cliché muito usado: ‘Ausência de evidência não é evidência de ausência’. Se houve um esforço enorme para encontrar associação e nenhuma foi encontrada, é verdade que isso pode não ser evidência direta de ausência de efeito (embora isso não pode nunca ser provado). Mas pode ser considerado evidência de ausência de um efeito importante.

Daso os números fornecidos pela EFSA e pela FSA, talvez não seja surpresa que nenhuma associação foi mostrada em grandes estudos. A EFSA estimou o BMDL10 da acrilamida em 170 µg/kg de peso corporal /dia  —  isso significa que é improvável que exposições nesse nível causariam tumores em ratos (tecnicamente, esse é o limite inferior de um intervalo de confiança que causaria aumento de 10% de tumores). Daí, eles compararam esse nível com a exposição humana obtida em multiplos estudos nutricionais. Em adultos, eles revelaram uma exposição média à acrilamida de 0,56 e exposição alta de 1,1 µg/kg/day, no sentido que 97,5% das pessoas consumem menos que isso. O BMDL10 é então dividido por essas exposições para gerar a ‘margem de exposição’, que confusamente acaba sendo alta para riscos baixos e baixa para riscos altos.


Tabela 1: BMDL10 é a exposição à acrilamida que toxicologistas consideram imporovável de causar aumento de tumor em ratos. A ‘margem de exposição’ é o BMDL10 dividido pela exposição estimada.

Então, por exemplo, adultos com o maior consumo de acrilamida poderiam consumir 160 vezes mais e ainda estar em níveis que toxicologistas consideram ser improvável causar aumento de tumores em ratos (é essencialmente isso que a ‘margem de exposição’ significa).

Isso parece ser reconfortante e pode explicar porque tem sido tão difícil observar algum efeito da acrilamida na dieta. Para cancer, os comitês toxicológicos demandam uma arbitrária ‘margem de exposição’ de 10.000 para considerar aceitável um composto químico. Isso é 33 vezes maior que a margem atual para adultos no Reino Unido  —  fazendo com que a acrilamida não atinja esse padrão bastante rigoroso de segurança, e essa é a base para a campanha da FSA.

Reações ao Go for Gold pode variar dos extremos de encorajar preocupação obssessiva entre os mais suscetíveis a anúncios de doenças como os hipocondríacos ao extremo oposto de irar editoriais em mais uma invasão do estado na vida das pessoas. Mias preocupante, as pessoas podem simplesmente considerar essa como mais uma história de terror dos cientistas e isso levá-las a descartar avisos realmente importantes como por exemplo dos perigos trazidos pela obesidade.

A agência de cancer britânica diz que 'pesquisadores estimam que sobrepeso e obesidade estão ligados a cerca de 18.000 casos de cancer por ano no Reino Unido'. Em contraste direto, a FSA não fornece estimativa do mal causado pela acrilamida, ném do benefício advindo da redução que os indivíduos terão ao seguir sua recomendação. Honestamente, não estou convencido que seja apropriado lançar uma campanha baseado nisso.

* - texto publicado pelo presidente da Royal Statistical Society (RSS) no boletim on-line da sociedade em 22 de janeiro de 2017 (versão original aqui).

Nenhum comentário:

Postar um comentário