terça-feira, 23 de maio de 2017

Pensamento crítico e alfabetização estatística são a resposta para uma era de pós-verdades*

www.rss.org.uk

por Hetan Shah, UK Statistics Authority e diretor executivo da Royal Statistical Society (RSS)


Estamos aparentemente em um mundo de pós-verdades. A eleição do Presidente Trump através da lagoa (NT: referência jocosa ao Oceano Atlântico) e a campanha do referendo da UE convenceram muitos de que a verdade está sob ataque de uma forma nunca antes vista. O que isso tudo significa para a campanha para a inesperada eleitoral geral em que estamos agora?

O Comitê de Cultura, Meios de Comunicação e Esportes da Câmara dos Comuns estava preocupado o suficiente para ter aberto um inquérito sobre "notícias falsas". No entanto, como sabem os estatísticos, este não é um fenômeno novo: propaganda de diferentes formatos são perigos sempre presentes na política. A preocupação da Royal Statistical Society sobre como melhorar o uso de fatos e evidências no debate público começou bem antes do interesse recente por esse problema.

O debate no período que antecedeu o referendo da UE conduziu particularmente a preocupações de que estamos numa era de pós-verdades. A reivindicação pela campanha da licença que nós pagamos 350 milhões de libras por semana à UE, que a autoridade independente de estatísticas britânica chamou de enganosa, tornou-se emblemática para a política de pós-verdades. 

Mas o referendo é mais bem entendido como um caso especial, ao invés de representativo da vida diária no Reino Unido. Os referendos estão sujeitos a uma regulação mais fraca do que as eleições e as campanhas não estão concorrendo para eleição, onde o eleitorado pode cobra-los depois. Talvez por ambas as razões, a campanha de referendo da UE deixou 52 por cento dos eleitores sentindo que ela não foi conduzida de forma "justa e equilibrada". 

Uma coisa que é nova, é claro, é a mídia social, que tem tido muita culpa pelo fenômeno pós-verdade. Em particular, plataformas como o Facebook tornaram muito rentável a invenção de notícias. 

Isso tem se mostrado irresistível para pessoas sem particular interesse no conteúdo das histórias que escrevem além do fato de elas serem lucrativas. Adolescentes macedônios, por exemplo, que construíram sites de notícias pro-Trump ganharam US$ 1.000 por mês em um país com um salário médio mensal de US$ 371.

Mas notícias falsas não tem nada de novo. Em 1835 um jornal americano publicou uma história em que um astrônomo dizia ter encontrado vida na lua. A história se tornou 'viral' e dentro de um mês estava sendo publicada na Europa. Os jornais lucraram com manchetes que hoje chamaríamos de "clickbait" (NT: conteúdo com interesse principal em geração de receita). Essas estruturas de incentivo são reconhecíveis nas mídias sociais de hoje.

As mídias sociais também são culpadas por criar câmaras de eco onde ouvimos apenas as nossas opiniões pré-existentes repetidas para nós. Isso poderia nos tornar mais crédulos de histórias que não são baseadas em fatos. No entanto, sempre tivemos nossas câmaras de eco no mundo analógico. Afinal, o Guardian e o Daily Mail falam para seus próprios públicos.

Assim, as notícias pós-verdade e falsas são menos novas do que as primeiras poderiam parecer. Já não havia era de verdade antes da pós-verdade. Mas isso não quer dizer que não há problema.

O que pode ser feito para melhorar o uso dos fatos nessa eleição? Os gigantes das mídias sociais têm claramente um papel a desempenhar. Eles têm sido relutantes, mas estão começando a lidar com a questão. Fundamentalmente, eles estão concordando que tornaram-se tão poderosos que não são apenas plataformas, mas editores, e, portanto, têm alguma função editorial.

Facebook começou a sinalizar histórias que são contestadas por verificações factuais. O Google parou o fluxo de receita proveniente de anúncios em alguns sites de notícias falsas. A Alemanha está desenvolvendo leis para multar redes sociais que não eliminem notícias falsas. Isso pode funcionar quando é claro o que é verdadeiro e o que é falso, mas provavelmente também irá criar muitos casos na fronteira.

Os acadêmicos podem desempenhar um papel importante na obtenção dos fatos nessa eleição, mas poucos tendem a fazê-lo com sucesso. Você precisa estar preparado para colocar a cabeça acima do parapeito, responder em tempo hábil, falar uma língua que as pessoas entendam, e não ir além de sua experiência. É um equilíbrio complicado, mas extremamente gratificante.

Verificadores independentes podem ajudar. Mas eles sofrem um problema de free-rider (NT: provedores de conteúdos gratuitos): todo mundo gosta da idéia, mas ninguém quer pagar pelo que eles fornecem. Fundações e filantropos precisam intervir e colocar dinheiro para apoiar a iniciativa. É bom ver que a BBC criou sua própria equipe interna de verificação de realismo.
 

E, no entanto, até os fatos em si mesmos não são suficientes. Há preocupações que dizer às pessoas os fatos podem apenas reforçar suas opiniões pré-existentes; o chamado "efeito de retrocesso". Uma nova pesquisa promissora por Sander van der Linden e colegas sugere, no entanto, que podemos vacinar o público contra a desinformação, fornecendo informações sobre os métodos através dos quais os fatos são obscurecidos ou negados ao lado de dar os fatos propriamente ditos. 

Em última análise, precisamos de um cidadão que tenha acesso a ferramentas de auto-defesa contra a pós-verdades e que se preocupam com a qualidade das notícias que consome. As sociedades mais esclarecidas têm um papel a desempenhar para alcançar além das suas audiências tradicionais. Por exemplo, o RSS desenvolveu treinamento estatístico gratuito para jornalistas e políticos para ajudar a melhorar o debate. Também organizamos debates públicos sobre questões sociais fundamentais, tais como "os fatos sobre a migração". 

Devemos explorar novas formas de promover o pensamento crítico, alfabetização estatística e uma mentalidade curiosa entre as pessoas jovens e velhas. Como é frequentemente o caso, as correções técnicas e políticas só podem nos levar até um certo ponto; educação é a única resposta sustentável a esta importante questão social.

============================
* - Texto publicado no mais recente boletim da Royal Statistical Society. Uma versão desse texto apareceu em Research Fortnight and Research Professional.

Um comentário: