terça-feira, 14 de maio de 2019

Estão desmoralizando a teoria das probabilidades

https://oglobo.globo.com/esportes/lucas-moura-heroi-tottenham-vai-final-da-champions-com-virada-historica-sobre-ajax-23650939

A frase acima foi escrita no tom admitidamente informal do WhatsApp por um amigo estatístico que, assim como eu, aprecia o futebol. Ela foi escrita logo após o término das partidas semifinais da Liga dos Campeões da Europa. A frase não é desprovida de sentido, como explicaremos a seguir. Mas antes, é importante entender o contexto.

Senão vejamos: no 1o jogo da 1a semifinal, o Barcelona venceu o Liverpool por 3 x 0 jogando em Barcelona e no 1o jogo da 2a semifinal, o Ajax venceu do Tottenham por apenas 1 x 0 mas jogando no estádio do Tottenham. Para que os perdedores dos 1os jogos se classificassem, era preciso que o Liverpool ganhasse a 2a e decisiva partida por 4 x 0 e que o Tottenham vencesse a 2a e decisiva partida por 2 gols de diferença ou por 2 x 1, 3 x 2, ... no estádio do Ajax. Essas eram tarefas improváveis por motivos diferentes.

No caso do Liverpool, a maior improbabilidade se devia à alta diferença no placar contra um time poderoso, recheado de excelentes jogadores e acostumado a decisões dessa natureza. No caso do Tottenham, a maior improbabilidade era devida ao local do jogo. Times costumam ter melhor desempenho quando jogam em seus estádios. Se o Tottenham perdeu jogando em seu estádio, a lógica indicaria uma maior chance de perder quando jogasse no estádio do adversário.

Mas não foi isso que se viu. O Liverpool conseguiu seu improvável placar de 4 x 0 em seu estádio e o Tottenham conseguiu seu igualmente improvável placar de 3 x 2 jogando no estádio de seu adversário. No caso da disputa Ajax x Tottenham, a situação foi ainda mais dramática: o 2o jogo, foi para o intervalo com placar de Ajax 2 x 0 Tottenham, reforçando a crença explicitada no parágrafo anterior. Será que a teoria das probabilidades ou seus usuários foram desmoralizados?  

Quem ataca, leva

Antes da explicação, é importante uma contextualização. O futebol começou na virada do século passado e tinha uma formação quase amadora, visando essencialmente o objetivo principal do esporte: fazer gols. Assim placares elásticos, como 6 x 5 ou 8 x 2, eram muito comuns. Lá pelo meio do século passado, esse padrão foi mudando, com as equipes começando a privilegiar aspectos defensivos. Como consequência, os placares ficaram mais econômicos (1 x 0 , 2 x 1, ...). Nesse contexto, ter habilidade apenas deixou de ser decisivo. Afinal, um jogador habilidoso poderia se livrar de 1 ou 2 marcadores, o que era suficiente nos primórdios do esporte, mas fatalmente pararia num 3o ou 4o marcador, inexistentes no início do esporte. Os esquemas táticos de organização dos times passou a ter uma relevância inédita até então.

Esse padrão se manteve com raríssimas exceções ao longo do século passado. Mas neste século as coisas parecem ter começado a mudar. O padrão de bom atacante hoje deve ser aquele que alia sua habilidade a uma capacidade de encontrar soluções mesmo cercado de 3 ou 4 adversários. Assim, foram criados super-atletas treinados para resolver situações em cenários de jogo muito adversos. Esse jogadores são muito valiosos e tendem a se concentrar nos times de maior poder aquisitivo, como as equipes semifinalistas acima mencionadas.

Paralelamente a isso, placares elásticos começaram a aparecer com alguma frequência e em partidas importantes. Dois exemplos emblemáticos vem imediatamente à mente: a derrota do Brasil por 7 x 1 para a Alemanha em plena semifinal de Copa do Mundo em 2014 (já tratada aqui) e a vitória do Barcelona sobre o Paris Saint Germain por 6 x 1 nas oitavas de final da edição de 2017 da mesma Liga dos Campeões.    

Acho que os pontos descritos nos dois parágrafos acima estão correlacionados. Equipes mais abonadas tem jogadores mais preparados para fazer performances excepcionais. Eles vem sendo treinados para isso. E quando chegam os momentos decisivos, eles estão prontos para atuar.

E agora vem o argumento que para mim foi decisivo em ambos os confrontos e que persiste dos primórdios do futebol até os dias de hoje: quem ataca, leva! Isso quer dizer que a vontade de vencer é um componente fundamental para conseguir superar desafios importantes. Isso vale não só para o futebol mas para vários outros esportes e também para vários outros aspectos da nossa vida.

Foi isso que Liverpool e Tottenham fizeram. Apesar de inferiorizados tecnicamente com relação a seus respectivos adversários, eles não se intimidaram com os cenários adversos que estavam enfrentando e foram "para cima" dos adversários, como se diz no jargão do futebol. Claro que isso não se aplica a qualquer time em qualquer confronto. Se você partir para o ataque sem fazê-lo de forma estruturada e sustentada, fatalmente receberá contra-ataques perigosos e se arriscará a levar um gol, pondo tudo a perder. 

E isso quase aconteceu com o Tottenham. Precisando partir para o ataque em busca dos 3 gols que lhe faltavam (o jogo foi para o intervalo com placar Ajax 2 x 0 Tottenham) tendo apenas os 45 minutos de um tempo de futebol, chegou a receber uma bola na trave aos 46 minutos do 2o tempo mas encontrou seu 3o e decisivo gol no último minuto da prorrogação de 5 minutos dados pelo juiz.

Como foi que times inferiores ou inferiorizados partiram para o ataque contra times superiores? E como lograram êxito? A resposta à 1a pergunta está contida na própria pergunta. Os times que estavam em vantagem procuraram garantir a vantagem que possuíam e evitar correr riscos. Com isso, quase que instintivamente adotaram uma postura mais defensiva, atraíndo seus adversários em direção à sua meta. Isso responde à 2a pergunta. Quem ataca tem mais chance de fazer gol que quem defende. E os gols decisivos de ambos os confrontos foram conseguidos já no final da partida. Assim, esses times não precisaram defender a vantagem recém-conquistada por muito tempo.   

[A disputa de uma das vaga no judo para as Olimpíadas de 2004 no judô entre Flavio Canto e Thiago Camilo ilustra esse ponto. Aproximava-se do final da 3a e decisiva luta entre eles. Flavio tinha vantagem na pontuação e conservadoramente se resguardava para não ser atacado. Faltando 9 segundos para o fim da luta, ele recebeu punição por falta de combatividade e a vantagem passou para Thiago. Nesse momento, Flavio partiu para o ataque por ser a única opção que lhe restou e Thiago passou a se agarrar à vantagem que acabara de obter. Faltando míseros 3 segundos, sofreu punição por falta de combatividade e acabou sendo eliminado. Na entrevista do Flavio após a luta, ele disse que se estivesse no lugar do Thiago teria feito o mesmo, correndo o risco de ser eliminado. O timing para essas ações fortuitas é fundamental e o acaso desempenha um papel preponderante nesses casos.] 

Como saber quando esse fenômeno acontecerá de novo? Essa é a pergunta sobre a qual os especialistas em avaliação de partidas de futebol precisarão se debruçar a partir de agora. Não dá mais para usar apenas a lógica da improbabilidade do resultado para alicerçar avaliações de probabilidade de partidas de futebol. Especialmente se envolverem jogos importantes, onde existe tanto em jogo, e com equipes qualificadas com altíssimo poder de fogo, como foram os casos recentes aqui tratados. Nesses cenários extremos, tudo pode acontecer e isso precisará ser levado mais em conta daqui para a frente.

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