terça-feira, 16 de junho de 2020

A batalha dos dados da pandemia


A postagem da semana passada deixou clara uma preocupação de vários setores da sociedade com respeito à divulgação dos dados da pandemia aqui no Brasil. Essa controvérsia ficou mais explícita com uma série de pronunciamentos de autoridades do Ministério da Saude (MS) no início de junho. A entrevista coletiva de sexta feira (05/06/2020) deixou clara a intenção do MS de introduzir mudanças mais profundas no tratamento dos dados da pandemia. Nessa entrevista, foi informado que o horário de anuncio dos dados diários seria mudado, quase ao mesmo tempo que o Presidente Bolsonaro celebrava o fato dessa medida impedir a divulgação pelos principais telejornais do pais. Essa relevância insólita dada ao horário com que um dado publico seria divulgado, associando-o à sua divulgação pela mídia em detrimento dos prejuízos causados por esse atraso acendeu o alerta em todos envolvidos com a pandemia.

Outro problema apenas mencionado na entrevista daquela sexta-feira e cuja implementação foi confirmada na 2a feira se referia à mudança na natureza do dado que passaria a ser divulgado. Para entender o que foi dito, vale informar que:
  1. o padrão internacionalmente adotado pela vasta maioria de países ao redor do mundo é o de divulgar a cada dia os números de casos confirmados e óbitos que foram notificados naquele dia;
  2. tendo esses números, basta soma-los aos números acumulados anteriormente para obter os totais reportados.
Com isso, existe uma forma clara e simples de toda a informação ser disponibilizado e verificada. Todos sabemos que essa forma de contagem não é a ideal pois desloca as reais ocorrências, que representam mais vividamente a pandemia, para datas posteriores quando elas se tornam disponíveis para o aparato oficial do pais/estado/município. 

Como exemplo, quando um país divulga 100 casos confirmados em um dado dia, sabemos que apenas uma parte deles foi confirmado nesse dia. A título de ilustração, vamos supor que 60 casos foram confirmados nesse dia mas que 15 foram confirmados no dia anterior, 10 foram confirmados 2 dias antes, 5 foram confirmados 3 dia antes e 10 foram confirmados mais de 3 dias antes. Vários motivos diferentes podem levar a esses atrasos, desde a ausência do profissional responsável pelo registro do caso até falha na comunicação entre hospitais e instituições governamentais.

Claro que buscando a história de cada caso, é possível a cada dia reconstituir os históricos dos dias anteriores e revisá-los. Essa tarefa está longe de ser trivial, ainda mais em um país onde se tarda horas para realizar a tarefa muito mais simples de receber os dados compilados em uma esfera (por exemplo, municipal) e agrega-los na esfera hierarquicamente superior (no exemplo, seria a estadual).

Pedir para que a cada dia, toda a história pregressa de contagens seja revisada é uma missão repleta de perigos, que deveriam ser a todo custo evitados. E isso sem contar na facilidade de manipulação que essa retro-alimentação enseja. Assim, embora reconhecendo a ascendência técnica no número de casos ocorridos, as dificuldades práticas são determinantes em todo o mundo na preferência da divulgação de casos notificados.

Todo esse longo prólogo foi para dizer que na entrevista coletiva do MS no dia 08/06/2020, autoridades do MS disseram que a divulgação seria trocada pela sistemática de divulgar apenas dos casos ocorridos diários, sem a divulgação do total de casos acumulados. Essa informação trouxe enorme preocupação sobre a indisponibilização (e consequente perda) das contagens totais de casos e óbitos. Para chegar a ela, se precisaria voltar às contagens anteriores, que também não foram disponibilizadas, embora tivesse havido a menção que isso seria feito. Como nesse dia também houve a interrupção da divulgação das séries históricas de casos e de óbitos, ficou impossível recuperar os totais e os valores diários dos dias anteriores. Naquele dia, o Brasil perdeu a capacidade de saber seus totais de casos e de óbitos com base no portal do Governo Federal criado exclusivamente para esse fim. 

Essa decisão do MS repercutiu de forma muito negativa no país e a mídia registrou inúmeras manifestações de preocupação e repúdio. Essas manifestações não se restringiram ao país e foram registradas também pela mídia internacional. Com a ausência de informação confiável, vários iniciativas foram disparadas. Instituições públicas se movimentaram na direção de suprir a lacuna deixada pelo MS. Anunciaram a criação de portais com dados atualizados da Covid o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde, e a intenção de fazer o mesmo foi anunciada pelo próprio Congresso nacional e pelo Tribunal de Contas da União! Isso sem contar várias iniciativas de grupos de indivíduos que já vinham acompanhando a evolução da pandemia.  

Um grupo de importantes jornais de circulação de âmbito nacional também resolveu promover sua própria contabilização de casos e de óbitos. E as contagens que esse consórcio jornalístico apresentou tinha diferenças marcantes com respeito às contagens divulgadas naquele dia pelo MS com números maiores, como esperado. Entretanto, apesar de toda a boa vontade, essa contabilização apresentou alguns dos vícios que esses mesmos jornais reclamavam da contabilização oficial. A saber, não houve divulgação ampla do conteúdo dessa plataforma, ela não foi disponibilizada e os dados que foram divulgados a critério dos jornais envolvidos apresentavam apenas uma parcela da informação que o MS já apresentava. Tentamos contato com alguns jornalistas envolvidos nessa plataforma mas não obtivemos êxito.

Paralelamente a isso, no dia seguinte (09/06/2020), o órgão máximo da justiça do pais, Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o MS voltasse a divulgar os totais de casos e de óbitos, atendendo a uma interpelação proposta por 3 partidos políticos. A imagem que abre esta postagem destaca o ministro que emitiu essa ordem. Apesar de um tanto estranha por exigir que o governo continuasse cumprindo seu papel de informar a nação os dados que coleta, ela talvez tenha sido determinante na manutenção da divulgação dos dados. Nesse mesmo dia, o portal do MS promoveu uma atualização nas definições dos dados lá divulgados mas paradoxalmente manteve a definição anterior de casos confirmados como sendo todos aqueles notificados, contrariamente ao que havia sido dito para todo o país a cúpula do MS no dia anterior. 

Talvez isso já tenha sido uma reação direta do cumprimento da determinação do STF. De fato, ao final do dia, as contagens apresentadas pelo MS foram substancialmente mais altas, até mesmo que as divulgadas pelo consórcio de imprensa, indicando que possivelmente houve um retorno à sistemática anterior. Entretanto, não houve comunicado oficial do MS, atualmente comandado interinamente por um general da ativa tido por alguns como tendo zero experiência em saúde, dando conta que a mudança anunciada no dia anterior tinha sido descartada. Ainda nesse mesmo dia, esse mesmo ministro interino da Saúde garantiu perante o Congresso Nacional que os dados seguirão sendo todos divulgados e que uma nova plataforma seria apresentada no dia seguinte. A plataforma divulgada no dia seguinte apresentava alguma mudança de forma e uma descrição mais detalhada das contagens diárias, sempre compatível com o padrão de divulgar notificações e não ocorrências.

Passada uma semana daquele trágico dia para a contabilização da pandemia, a situação parece ter se normalizado. O MS segue divulgando como antes os totais diários de casos confirmados e óbitos que foram notificados naquele dia, embora no fim de semana houve interrupções. As iniciativas de grupos independentes seguem ativas; parte deles já estavam acompanhando a pandemia bem antes desse incidente. As contagens do consórcio de jornais continuam sendo divulgadas até hoje mas não acredito que durem muito mais tempo. Felizmente, parece que foi só um susto mas que serviu para deixar toda a nação bem mais atenta e com isso desestimular iniciativas de mudanças incompatíveis com o padrão adotado no resto do mundo. O governo já recebeu o recado que imprimir mudanças mais profundas como as que chegaram a ser anunciadas não impedirá o país de se informar adequadamente sobre a evolução da pandemia seguindo o padrão mundial. Só lhe servirá para dificultar a obtenção dos dados corretos. Esperemos que a lição tenha sido aprendida.

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