www.nature.com/nature/journal/vnfv/ncurrent/fig_tab/nature18296_F1.html
O assunto zika x microcefalia adquiriu grande importância no cenário nacional a partir do ano passado com o grande aumento do número de casos de microcefalia em recém-nascidos. A epidemia de microcefalia ultrapassou as fronteiras nacionais e se tornou um problema de grandes proporções não só na América Latina mas, devido à forma de transmissão do virus, em outros países espalhados pelo mundo. Esse assunto já foi recentemente tratado aqui. Além da importância inerente ao assunto, restava a dúvida sobre a existência de causalidade (e não apenas óbvia associação) entre o virus da zika e a ocorrência de microcefalia em filhos nascidos de mães contaminadas. A distinção entre associação e causalidade também já foi tratada aqui. Além disso, a questão da precedência temporal foi destacada aqui como fator importante para a distinção acima.
Volto aos temas causalidade e zika x microcefalia por conta da publicação na semana passada de um artigo científico na prestigiosa revista científica Nature. O artigo tem co-autoria de uma numerosa equipe de pesquisa sediada majoritariamente em departamentos na Biologia e na Medicina na Universidade de São Paulo. A figura acima, extraída do artigo, deixa clara a forte associação entre o virus e a doença. Mas o artigo vai além e apresenta um estudo que dá mais um passo na direção de estabelecer uma relação de causalidade (e não apenas associação) entre a zika e a microcefalia. O título do artigo é bastante assertivo ao afirmar "Variante brasileira do virus Zika causa defeitos de nascimento em modelos experimentais". O texto pode ser obtido na íntegra aqui. A relevância do estudo encontrou eco na mídia nacional. Exemplos incluem site do CNPq, revista da FAPESP e mesmo o jornal Estado de São Paulo, representando a grande mídia.
Reproduzo abaixo o texto do Estadão por ser um meio termo interessante entre um texto para o público leigo e um texto para o público especializado. Além disso, foi escrito por um renomado pesquisador da mesma Universidade onde o trabalho foi realizado. Por último, vale a pena a descrição dos métodos que devem ser usados em Biologia para estabelecimento de causalidade.
Zika pode causar microcefalia
por Fernando Reinach
Seis meses de cautela, hesitação e coleta de dados. Mas os cientistas finalmente concluíram que há evidências suficientes para afirmar que o vírus zika pode causar microcefalia e outras más-formações em fetos. Mais interessante que a conclusão é a lista do que ainda não sabemos.
A análise foi baseada em duas listas de condições que precisam ser cumpridas para caracterizar uma relação de causa e efeito. Para cada uma dessas condições os cientistas avaliaram se os dados já coletados são suficientes para afirmar que o zika causa microcefalia.
A primeira lista foi proposta por Thomas Shepard, em 1994. Ela contém sete critérios, e é usada para demonstrar a teratogenicidade (capacidade de provocar más-formações congênitas) de vírus e substâncias químicas. Dos sete critérios, quatro estão presentes no caso do vírus zika. Um foi confirmado parcialmente, um não foi confirmado e um somente se aplica no caso de compostos químicos.
Primeiro, os cientistas concluíram que há evidências suficientes para afirmar que o zika infectou as mães de crianças microcéfalas durante a gravidez. Segundo, que existe uma caracterização clara das peculiaridades deste tipo de microcefalia, que a separa de outros tipos, como, por exemplo, as pregas no couro cabeludo das crianças afetadas. Terceiro, que foram identificados eventos raros de contaminação associados a sintomas também raros – neste caso, o fato de uma mulher que passou somente uma semana no Brasil e, ao voltar ao exterior, foi constatado que seu filho apresentava microcefalia. Aí o importante é a baixa probabilidade desses dois eventos não estarem relacionados de forma causal. O quarto critério é que existe plausibilidade biológica. Essa plausibilidade biológica se caracteriza pela detecção do vírus no cérebro de crianças afetadas (se o vírus só afetasse a unha do pé, por exemplo, não existiria plausibilidade biológica, pois fica difícil explicar como sua presença no pé pode afetar o desenvolvimento do cérebro).
Essas são as condições cumpridas. As duas ainda não cumpridas são: a existência de dois estudos epidemiológicos bem planejados que comprovem a relação causal entre o vírus e a microcefalia (o primeiro estudo está sendo feito na Colômbia) e a inexistência em um modelo animal (rato ou macacos). Esta condição somente será cumprida quando for possível infectar um animal com o vírus e demonstrar microcefalia nos filhotes.
A segunda lista, os critérios de Bradford Hill, foi proposta em 1956, com o objetivo de separar associação e causalidade. Já escrevi sobre esses critérios aqui (Zika: Associação não é Causa, 5 de dezembro de 2015). Nessa lista, dos nove critérios (força da associação, consistência, especificidade, temporalidade, gradiente biológico, plausibilidade, coerência, modelo animal e analogia), somente o critério de modelo animal não foi considerado satisfeito.
Assim, com base na análise dessas duas listas de critérios, e considerando que a maioria dos critérios foi satisfeita, os cientistas estão seguros de que o vírus zika pode causar microcefalia e outras más-formações congênitas.
Em suma, agora sabemos que o zika pode causar microcefalia, mas ainda não sabemos em qual porcentagem das mães infectadas os filhos serão afetados. Tampouco sabemos quais fatores aumentam ou diminuem as chances de os filhos serem afetados. A ciência progride, mas muitas vezes em velocidade muito menor do que gostaríamos.
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